Reportagem Especial

Reportagem Especial

Realizada por estudantes de Jornalismo da Faculdade Maurício de Nassau:


Breno Peres, Carlos Eduardo Mélo, Edwillames Santos, Rodrigo Passos e Wellington Silva

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A Cidade dos Extremos




O relato acima é apenas uma das centenas de histórias ocorridas em um lugar tão cheio de contrastes: tristeza e alegria; dores e afagos; abandono e cuidado; lágrimas e sorrisos. Instalado distante da vida urbana, em local elevado, e rodeado de mata virgem, o Hospital-Colônia da Mirueira (HM) foi inaugurado em 1941, com um único propósito: isolar os leprosos de Pernambuco do contato com as pessoas sadias. Na Campanha contra a Lepra, a medida chamada de Isolamento Compulsório foi tomada para atender ao Ministério da Educação e Saúde no Serviço de Profilaxia da Lepra, pois já ocorria em todo o mundo. A ideia era que se devia privar a liberdade individual de um doente em proteção a um coletivo saudável.
Os hansênicos de Pernambuco, tomados como flagelados da humanidade, foram colocados numa área de 200 hectares, na cidade de Paulista, a 14 quilômetros da capital. O Governo Federal financiou a obra, enquanto o Governo do Estado ficou responsável pela administração da colônia. Com capacidade para 400 pacientes, chegou a abrigar mais de 500.
Embora levasse “hospital” no nome, o Leprosário da Mirueira teve um caráter mais asilar. Além dos leitos e enfermarias, no complexo médico para o tratamento dos doentes, o lugar funcionava como uma pequena cidade, projetada com ruas, praças, igrejas, prefeitura, delegacia, escola, áreas de lazer e, inclusive, uma espécie de banco. A ocupação dos cargos também era de responsabilidade dos pacientes. Então, o prefeito, o delegado e o professor, como os outros, tinham hanseníase.
Eles, mesmo longe dos entes queridos e aprisionados aos muros da colônia, reaprenderam a viver. Refizeram suas vidas sem apenas esperar a morte chegar. O sofrimento e a dor deram espaço para sentimentos opostos e a consequência disso foi uma força sobrenatural injetada na luta contra o esquecimento e no direito de se levar uma vida próxima do normal. Novos laços surgiram para preencher o espaço vazio, pois descobriram que ainda tinham uns aos outros. As casas foram levantadas e divididas entre a Vila dos Solteiros e a Vila dos Casados. Como não podiam sair do hospital, os casamentos eram feitos por meio de procurações e só as festas aconteciam na Mirueira.
Como num chão árido que brota uma flor do sertão, a vida conseguiu dar felicidades à “metrópole da dor” ou “cidade do medo”, como ficou conhecida. Em cada um, eis que um dom foi concebido. As palavras, a música, a encenação e a dança eram a única liberdade. Tudo acabava se traduzindo em um grito de sobrevivência.
Dentro da colônia, criaram grupos teatrais (Troupe Teatral Brasil Lisboa e Cine Teatro Brasil Lisboa) que faziam espetáculos no Teatro (TAL); um jornal chamado A Voz da Mirueira (mais tarde se chamaria O Momento), que tomou dimensões internacionais, chegando até outras colônias fora do país; o Grêmio Cultural Silvino Lopes para ensinar e incentivar os internos à literatura; a Escola de Música (depois Grupo Musical Alfa, que produziu um disco carnavalesco intitulado “Moreninha Dengosa”), além de dois blocos carnavalescos (os Farrapos e os Batutas) e dois conjuntos musicais (Águias do Ritmo e Five Boys); e uma Federação Esportiva com três times de futebol (União Atlético, Guararapes F.C. e São Cristóvão F.C.). Os colonos ainda tinham uma sala de projeção, que exibia filmes duas vezes por semana; um clube (ou Dancing, como era conhecido) para as suas festas e bailes; e uma biblioteca que chegou a ter mais de 2 mil livros.
E, assim, resistiram, brava e silenciosamente, à exclusão e condenação à morte imposta por uma sociedade preconceituosa e sem conhecimento.
Acaba o Isolamento Compulsório
Somente em 1962, o Isolamento Compulsório teve fim. Porém, não para a angústia dos portadores da doença. O mundo além dos limites do Hospital da Mirueira era desconhecido. À medida que foram saindo e ganhando a liberdade, descobriram que o preconceito ainda estava vivo na mente das pessoas. Como animais criados em cativeiro, quando soltos não sobrevivem por muito tempo, porque desaprendem a caçar, a se defender, a ser livres. Foi isso que aconteceu aos moradores da então ex-colônia. Por esta razão, muitos permaneceram por lá temendo a vida exterior, e boa parte dos que tentaram viver fora do HM voltaram pedindo ajuda.
Os Egressos, isto é, os ex-colonos que prestam serviço ao hospital, estão espalhados por todos os lugares. As atividades são remuneradas com um salário mínimo, instituído por decreto governamental, e variam em: limpeza da enfermaria, ajudante de pedreiro, ambulatório, etc. Seu Washington, por exemplo, trabalha na Farmácia do HM e conta um pouco de sua experiência no local (escute no áudio abaixo).



Hoje, com a descentralização do atendimento e o avanço da medicina, é proibido se tornar morador, mas ainda há quem chegue hansênico e queira viver lá devido à rejeição sofrida nos tempos atuais. Os moradores sobreviventes ao compulsório, desde 2007, têm direito a uma pensão vitalícia do governo, se comprovada sua internação através de documentos.
Preventório
Uma triste história relatada pelos ainda moradores da ex-Colônia da Mirueira é a do Preventório. Na maternidade do próprio hospital, as crianças logo ao nascerem eram submetidas a um exame para saber se já estavam infectadas pela hanseníase. Caso o resultado fosse positivo, o bebê permanecia na colônia sob os cuidados da mãe. Porém, a negatividade do exame tirava a criança imediatamente do lugar direto para o Preventório, uma espécie de creche ou orfanato, onde abrigava os filhos dos pacientes da Mirueira.
Lá, moravam até ficarem mais velhas e o contato com sua mãe não representasse perigo algum a ela. Então, o passo seguinte era construir um laço perdido desde o primeiro e último.
Dois lados se chocam até hoje: um impedia que a criança pegasse a doença e o outro arrancava o filho dos braços de uma mãe. Só não se sabe o quanto há de certo e errado neles.
Seu Washinton também conta essa história:


Extermínio dos leprosos

Durante muitos séculos, a doença que hoje chamamos de hanseníase era conhecida como lepra. Oficialmente, seus primeiros registros no mundo datam de, aproximadamente, 600 anos antes de Cristo, na Índia. Desde então, o preconceito e o estigma acompanham essa endemia, devido às deformidades causadas por ela e a falta de informação e esclarecimento sobre as formas de contágio e tratamento.

Na Bíblia, por exemplo, há mais de dezessete referências aos termos lepra e leproso, tendo, inclusive, dois capítulos dedicados exclusivamente a esse assunto, no livro de Levítico. Em algumas passagens, medidas drásticas eram tomadas a fim de afastar os hansenianos da população sadia, entre elas o isolamento compulsório.

Outro exemplo histórico das crueldades que os leprosos passavam ocorreu em Bizâncio, no reinado do imperador Constâncio II. O método criado por ele para conter a doença foi afogar todos os infectados. Há, também, o caso do rei Felipe V, que condenou os portadores do bacilo de hansen a serem queimados na fogueira, mas, por ironia do destino, o próprio rei morreu afetado pela doença. No áudio abaixo, o teólogo Edirlan Anulino da Silva, 51 anos, faz um comparativo entre o Antigo e Novo Testamentos do livro sagrado cristão, a Bíblia.



Evolução da Hanseníase

A visão estigmatizada da hanseníase vista durantes milhares de anos perdura até hoje em vários lugares onde existe a doença. Infelizmente, muitos ainda carregam uma ideia distorcida da endemia. Aqui no Brasil, registros históricos afirmam que a hanseníase chegou com os primeiros europeus, durante a colonização. Ainda segundo essas fontes, o Rio de Janeiro teria sido a primeira cidade brasileira a apresentar os primeiros casos da doença, por volta de 1600. Em 1976, o país trocou o nome lepra por hanseníase, em homenagem ao médico norueguês que descobriu o micróbio, Gerhard Hansen. Há pouco mais de vinte anos, o isolamento compulsório dos portadores de hanseníase ainda funcionava no país, mesmo este tipo de tratamento tendo sido oficialmente extinto em 1962.

Com o avanço da medicina, em 1941, foi descoberta a primeira droga que combate a doença, a sulfona. Atualmente, o diagnóstico da doença é simples, fácil de tratar e tem cura. Porém, se diagnosticada e tratada tardiamente pode causar sérias consequências para os portadores, devido às sequelas que os incapacitam fisicamente. As primeiras manifestações são na pele, como manchas esbranquiçadas ou avermelhadas que apresentam perda de sensibilidade, sem evidência de lesão nervosa troncular. Elas ocorrem em qualquer região do corpo, mas, principalmente, na face, orelhas, nádegas, braços, pernas e costas, podendo, também, acometer a mucosa nasal. Segundo a coordenadora de enfermagem do Hospital da Mirueira, Rosa Maria Carlos de Albuquerque, a principal diferença entre a hanseníase e outras doenças dermatológicas é que as lesões de pele da hansen sempre apresentam alteração de sensibilidade.

Caso a doença não seja descoberta no início, a sua evolução causa danos aos nervos, principalmente nos troncos periféricos. Com isso, podem aparecer nervos engrossados e doloridos, diminuição de sensibilidade nas áreas envolvidas por eles, como olhos, mãos e pés, além da diminuição da força dos músculos. Essas lesões são responsáveis pelas incapacidades e deformidades características da hanseníase.

Do sonho à realidade


Fernando é um dos pacientes que, desde quando foi internado, não teve vida fora do Hospital da Mirueira. Chegou lá por volta dos 13 ou 14 anos e, além das feridas emocionais, carregava consigo marcas visíveis em seu corpo. Dedos atrofiados, ferimentos na perna e perda de parte da cartilagem do nariz, eram os sintomas da hanseníase que ele já conhecia.
Levado ao hospital por uma vizinha, que se propusera a buscar auxílio médico, ele foi enviado diretamente para um pavilhão, onde ficou isolado, pois a doença já estava em estágio avançado. Durante o tratamento, foi transferido para a enfermaria. Lá, pôde ter mais contato com outras pessoas. Durante os primeiros cinco anos de internamento, não teve nenhum contato com a sua família. Além de alguns não quererem vê-lo, o próprio hospital não permitia a aproximação, para evitar que a doença fosse transmitida. Depois desse tempo, um de seus irmãos foi em busca de notícias dele e, sabendo da melhora do interno, veio, em seguida, seu irmão caçula. Por fim, Fernando recebeu a visita do seu pai. “Quando todos viram que eu estava bem e não corriam risco de se contagiar, eles passaram a me visitar mais vezes. O tempo que passei longe da minha família foi muito difícil. Fiquei bastante feliz quando a gente voltou a se ver”, confessa, emocionado.
Após entrar no Hospital da Mirueira, Fernando não teve mais acesso ao mundo exterior. Todos os seus documentos foram tirados lá mesmo, e o pouco que sabe ler, também aprendeu na Mirueira. Depois de alguns anos, começou a trabalhar e conheceu a sua mulher, com quem construiu uma família e teve três filhos. Além deles, fazem parte do seu núcleo familiar todos aqueles que moram, moravam ou simplesmente passaram uma temporada no hospital. “Antigamente, mesmo o preconceito sendo maior, a alegria imperava aqui dentro. Esse hospital era uma cidade. Agora só restam os moradores mais idosos, que já estão acamados” afirma o ex-portador de hanseníase, acrescentando que o número de internos era tão grande que havia pessoas suficientes para montar duas escolas de samba e três times de futebol. Os cidadãos da Mirueira tinham tudo o que precisavam: festas, rádio, igrejas, até uma delegacia existia no local.
Hoje, com a diminuição do preconceito e curado, Fernando continua prestando serviços no hospital, onde viveu a maior parte de sua vida, e recebe um salário por isso. Quando necessário, cruza as barreiras do hospital, com o seu carro, e vai até as ruas para fazer compras ou, simplesmente, passear. Mas, ainda assim, o amor de sua tia, por quem foi criado, ele nunca recuperou. “Eu peço a Deus, todos os dias, que ela me perdoe se eu fiz alguma coisa de errado”, desabafa.